Foi no ano de atribuição do Nobel que estive numa fila, quase duas horas ao sol, para falar com José Saramago e pedir-lhe que me autografasse este livro.
Foi na Casa da Cultura, espaço muito interessante da minha cidade.
Para mim não foi novidade, da mesma forma e depois de uma espera extensa em fim de dia, fui falando também (cumprimentei, aliás, Ramos Horta, Dalai Lama entre outros) com personalidades que de alguma forma merecem a minha consideração.
Recordo agora os breves momentos passados com Saramago porque o merece indubitavelmente e porque foram especiais para mim.
Depois de duas horas em pé na rua e mais 40m numa fila com os livros na mão, chegou a minha vez...
Cansada, olhava-o fixamente, tentando gravar na memória aqueles momentos de verdadeiro privilégio...Ele, mecanicamente autografava um livro atrás do outro com um ar absolutamente esgotado que o seu rosto sério e circunspecto, acentuava.
Eu que havia preparado um discurso muito rápido de agradecimento e pretendia falar-lhe sobre a minha admiração por ele e pelo seu percurso pessoal (e não falo apenas do Nobel) que o levara (neto e filho de iletrados) de operário a escritor de renome e respeito mundiais, preparava-me mas... À minha frente surgiu um homem, com alguma idade, nitidamente cansado, muito educado e subtilmente impaciente.
De repente dei-me conta que aquele homem discreto e reflexivo, avesso a multidões, correra mundo nos últimos meses, dera dezenas de conferências e entrevistas e falara (arrisco) com milhares de pessoas que lhe haviam expressado o mesmo que me ensaiara para lhe dizer....
E ele pareceu-me mais idoso e mais cansado do que aparentava na televisão...
Sempre me ocorre improvisar em momentos desses, costumo encontrar as palavras certas para a situação e, num impulso de empatia, disparei:
"- Tem um ar bastante cansado, não há de ser fácil dar resposta a tanta solicitação e atenção, difícil não é?"
Ele parou de escrever e olhou-me com aqueles seus olhos pequenos e expressivos, através daqueles óculos que todos conhecem e que penso nunca alterou, e respondeu:
-" Se não fosse tão sincero, dir-lhe-ia que não, mas como sou tenho que admitir que sim, canso-me muito."
Eu que sinto sempre um renovar de energias quando alguém me abre o coração e é genuíno, não resisti e continuei o diálogo que só deveria (por respeito à fila enorme atrás de mim...) durar alguns segundos:
"- O senhor é principalmente um bom exemplo!"
Foi nesse momento que ele pousou a caneta e segurou com as duas mãos a que lhe estendi.
Apeteceu-me ficar ali, buscar-lhe um café e conversar com ele sobre o seu percurso, sobre os dias e horas que passara na biblioteca pública a ler tudo o que encontrava ao fim de um dia de trabalho duro na oficina de serralharia...
Pedindo-lhe que me contasse como ele "se"construíra como escritor e como pessoa...
Mas a fila atrás de mim impacientava-se e ele precisava concluir aquele compromisso e voltar para a sua ilha, para a sua paz e reencontrar o ambiente que lhe permitia ser tão criativo e original.
Ele já nos dera tanto, merecia sossego.
Agradeci, despedi-me e retomei a minha vida.
Foi outro daqueles momentos que guardo no meu coração.
Agradeço à vida por ele.