Natal...
O clique estridente que ficou do telefone que bateu, até soou a alívio depois de escutar tanto destempero. Ela ficou ali, com o auscultador na mão, a respirar fundo, parada..
O Natal, como sempre o sonhara, há quatro anos que a desilude...Três casas a visitar, um pai e uma mãe que a partir da separação cobram e dividem cada minuto da visita, familiares que controlam, cobram e despejam frustrações como acontece em todas as festas onde o vinho e a euforia não são medidos.. Um marido que, incapaz de contrariar o mau exemplo do pai, usa jogar cartas no café em dia de Natal...
E uns filhos encantadores e ansiosos à espera do Pai Natal e a necessitar de ser protegidos.
Encaixa pequenas camisolas e gorros em malas e sacos e vai cruzando entre a mente e o coração, acontecimentos, expectativas, palavras ditas e ouvidas, decepções e desencontros...
Triste, contrariada, mesmo percebendo que o esforço não seria percebido nem valorizado por ninguém, tem por certo apenas a certeza de que está emocionalmente pouco disponível e os seus filhos, apesar do entusiasmo simulado... o "sentiriam".. .
Arruma, mais uma vez dentro de si, o desalento para melhor simular o festejo. Socialmente é isso que dela se esperava, e ela sempre cumpre...
E todas pessoas e postais lhe tinham desejado Feliz Natal?
Parecem-lhe inúteis. Feliz?
Tudo limpo e arrumado, filhos arranjados, malas e prendas no carro e, apesar de nenhuma vontade, inicia o caminho de 169 km.
Só deseja que já fosse dia 26...
Ou...
Pousa o auscultador com a mesma calma e...esvazia as malas, desce a arruma na garagem o saco das prendas compradas por " imposição" social à espera da...Páscoa?
Pega novamente no telefone e informa que enquanto não existir respeito pelo tempo e privacidade de cada um, enquanto o Natal for apenas um ritual anual de acerto de contas e despejar de frustrações e discussões, não pretende participar com a sua família.
Cansou.
Avisa em casa que os meninos merecem um Natal de verdade, em que palavras como família, harmonia e bom exemplo são mais do que enunciados que se repetem, desejam e se trocam socialmente, são para praticar.
Quebra o ciclo vicioso e decide celebrar o Natal que os seus filhos merecem.
E que faz sentido.
As compras são rápidas, alguma comida, alguns ingredientes para duas sobremesas (ninguém necessita para ser feliz de comer 10 variedades de carne e doces...) e a árvore, que iria ficar apagada durante os três dias de ausência, iluminada.
E com um presente para cada um.
Jantam na sala, depois lêem um conto, não um qualquer - o de Dickens: "Conto de uma Noite de Natal"
Procura ainda ter tempo para falar daquele menino nascido há mais de 2000 anos, que mudara o mundo com a sua inteligência e bondade e que dá significado a esta quadra, fazendo-os perceber a substância desta festa de família, não de consumo ou rituais vazios...
Debaixo do edredão ainda haverá tempo para rirem muito, bem abraçadinhos, com o "Sozinho em casa" . Mais uma vez ;)
Adormecem na sala todos juntos, aninhados e quentinhos e ela olha para eles e agradece àquele mesmo menino, tudo e tanto.
E todos guardam no coração este Natal.
Às vezes sabemos o caminho, mas, no final falta mesmo a decisão de o percorrer.
E o tempo não volta, nem a infância se recupera.