Quarta-feira, 14 de Julho de 2010

Foi no ano de atribuição do Nobel que estive numa fila, quase duas horas ao sol, para falar com José Saramago e pedir-lhe que me autografasse este livro.

Foi na Casa da Cultura, espaço muito interessante da minha cidade.

Para mim não foi novidade, da mesma forma e depois de uma espera extensa em fim de dia, fui falando também (cumprimentei, aliás, Ramos Horta,  Dalai Lama entre outros) com personalidades que de alguma forma merecem a minha consideração.

Recordo agora os breves momentos passados com Saramago porque o merece indubitavelmente e porque foram especiais para mim.

Depois de duas horas em pé na rua e mais 40m numa fila com os livros na mão, chegou a minha vez...

Cansada, olhava-o fixamente, tentando gravar na memória aqueles momentos de verdadeiro privilégio...Ele, mecanicamente autografava um livro atrás do outro com um ar absolutamente esgotado que o seu rosto sério e circunspecto,  acentuava.

Eu que havia preparado um discurso muito rápido de agradecimento e pretendia falar-lhe sobre a minha admiração por ele e pelo seu percurso pessoal (e não falo apenas do Nobel) que o levara (neto e filho de iletrados) de  operário a escritor de renome e respeito mundiais, preparava-me mas... À minha frente surgiu um homem, com alguma idade, nitidamente cansado, muito educado e subtilmente impaciente.

De repente dei-me conta que aquele homem discreto e reflexivo, avesso a multidões, correra mundo nos últimos meses, dera dezenas de conferências e entrevistas e falara (arrisco) com milhares de pessoas que lhe haviam expressado o mesmo que me ensaiara para lhe dizer....

E ele pareceu-me mais idoso e mais cansado do que aparentava na televisão...

Sempre me ocorre improvisar em momentos desses, costumo encontrar as palavras certas para a situação e, num impulso de empatia, disparei:

"- Tem um ar bastante cansado, não há de ser fácil dar resposta a tanta solicitação e atenção, difícil não é?"

Ele parou de escrever e olhou-me com aqueles seus olhos pequenos e expressivos, através daqueles óculos que todos conhecem e que penso nunca alterou, e respondeu:

-" Se não fosse tão sincero, dir-lhe-ia que não, mas como sou tenho que admitir que sim, canso-me muito."

Eu que sinto sempre um renovar de energias quando  alguém me abre o coração e é genuíno, não resisti e continuei o diálogo que só deveria (por respeito à fila enorme atrás de mim...) durar alguns segundos:

"- O senhor é principalmente um bom exemplo!"

Foi nesse momento que ele pousou a caneta e segurou com as duas mãos a que lhe estendi.

Apeteceu-me ficar ali, buscar-lhe um café e conversar com ele sobre o seu percurso, sobre os dias e  horas que passara na biblioteca pública a ler tudo o que encontrava ao fim de um dia de trabalho duro na oficina de serralharia...

Pedindo-lhe que me contasse como ele "se"construíra como escritor e como pessoa...

Mas a fila atrás de mim impacientava-se e ele precisava concluir aquele compromisso e voltar para a sua ilha, para a sua paz  e reencontrar o ambiente que lhe permitia ser tão criativo e original.

Ele já nos dera tanto, merecia sossego.

Agradeci, despedi-me e retomei a minha vida.

Foi outro daqueles momentos que guardo no meu coração.

Agradeço à vida por ele.



publicado por Marta M às 00:44
Olá Marta!

Que ternura este teu relato. O gesto que Saramago teve para contigo ao agarrar-te a mão significa que tocas-te nos seu coração e que este agradeceu por isso. Tão bom.

Lindo este teu post.

Abraço com carinho para ti
Caminhando... a 17 de Julho de 2010 às 16:30

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Afinal quem penso que sou..
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